Além da Coerência: o que a IA não entende sobre a verdadeira inteligência
Além da Coerência: o que a IA não entende sobre a verdadeira inteligência
(Leadership Post-AI Series)
Vamos começar com uma confissão: este texto começa com uma referência que quase ninguém fora de um diagrama de Venn muito específico, uruguaios e economistas teóricos, vai entender. 🙂
Estou falando de Ramón Díaz, um economista lendário de um pequeno e demograficamente estagnado país encravado entre dois egos continentais da América do Sul (Argentina e Brasil): o Uruguai.
Ele escrevia com uma precisão matemática capaz de deixar Euclides, o pai grego da Geometria, com inveja. Mas quando falava, era puro movimento browniano: digressões, voltas, ideias colidindo no ar, como aquele “tremor errático” do pólen observado pelo botânico Robert Brown. Ler Díaz era como ouvir Bach: consistente e articulado. Ouvi-lo era como estar preso em um ensaio de jazz: caótico e confuso.
E é justamente nesse contraste entre clareza e confusão que se revela a maior ilusão da Inteligência Artificial.
A fraude da clareza: coerência não é inteligência
IA não “lida” bem com a bagunça. Voltando ao nosso herói, Díaz: ela é como sua escrita, não como sua fala. Nos entrega respostas que soam certas, polidas e orgulhosas, mas sem as marcas do pensamento real. É o aluno sabe-tudo que nunca passou por uma crise.
Chamamos isso de inteligência. Mas não é. É coerência, lógica dentro de uma caixa.
A vida real, por outro lado, é contraditória, barulhenta e desordenada. Nosso cérebro humano evoluiu para surfar a vida em toda a sua complexidade, não para ignorá-la ou apagá-la.
Nos enganamos acreditando que as coisas podem ser perfeitamente claras e coerentes. Elas não são. A incerteza não é um defeito a ser corrigido.
O brilho emaranhado de Díaz nos lembra o que as máquinas ainda não conseguem imitar: a eloquência da confusão. Às vezes, a coisa mais inteligente que um ser humano pode dizer é:
“Estou completamente confuso. Eu não sei.”
E não há nada mais libertador do que isso.
Quebrando a saia de vidro da lógica
A IA opera dentro do que gosto de chamar de saia de vidro da lógica (não de ferro, se me permitem): um labirinto fechado onde cada resposta se conecta à anterior em um loop infinito de espelhos.
É aqui que entra Kurt Gödel, com seu Teorema da Incompletude, sugerindo que a intuição e a mente humanas superam infinitamente o poder de qualquer máquina finita.
Aplicando seus teoremas, entendemos que qualquer sistema complexo o suficiente para descrever a realidade sempre conterá verdades que não pode provar.
A lógica é a piada infinita dos autocertificados de razão.
Nós vivemos nas lacunas da lógica; somos, por design, o glitch na matrix.
E isso não é uma fraqueza. É consciência.
Reason to Believe: por que o silício não tropeça
Aqui a física entra na conversa.
A IA vive no silício, um sólido cristalino. Seus átomos estão trancados em grades geométricas perfeitas. Os elétrons se movem de forma previsível; o “ruído” é filtrado, porque a imprevisibilidade quebra os circuitos.
O silício não gosta de se mover, ele gosta de obediência.
O silício não tem sentimentos, mas sua química é quase um prenúncio do Frankenstein de Mary Shelley:
“Você é meu criador, mas eu sou seu mestre. Obedeça.”
A inteligência humana, por outro lado, é baseada em água.
Nossos neurônios transmitem impulsos em uma solução aquosa com sais e outras substâncias.
E cada molécula em nosso corpo é constantemente agitada por algo chamado movimento browniano, trilhões de colisões aleatórias por segundo.
É esse caos microscópico constante que dá origem à inteligência humana na forma de flexibilidade, criatividade e equilíbrio entre ordem e caos.
A água não simula a aleatoriedade — ela é a aleatoriedade.
É por isso que os sistemas vivos podem improvisar, adaptar-se e sonhar: porque sua própria estrutura é feita de movimento e vibração.
Até agora, a IA baseada em silício só consegue fingir isso.
Seus “geradores de números aleatórios” são apenas algoritmos determinísticos disfarçados de roleta cósmica.
É como tentar aprender espontaneidade lendo um manual sobre jazz.
Vale mencionar que há tentativas de gerar “ruído térmico” ou “aleatoriedade parcial” em chips de silício, mas tudo isso continua limitado pela natureza cristalina e coerente do material.
Será possível tornar a IA browniana?
Talvez.
Se abandonarmos os chips rígidos e migrarmos para computação líquida ou arquiteturas quânticas estocásticas que permitam à matéria “dançar”.
Será preciso múltiplos gatos de Schrödinger acontecendo ao mesmo tempo, mas uma IA baseada em água poderia, um dia, pensar menos como uma calculadora e mais como uma correnteza: imprevisível, fluida, viva.
Até lá, as máquinas que treinamos continuarão confundindo estabilidade com sabedoria.
A verdade ambígua
Se houver um próximo salto na IA, ele não virá de modelos maiores nem de dados mais limpos.
Virá de abraçar a matéria caótica, de permitir que o cálculo flua, de descongelar a coerência em algo mais browniano, falho, humano.
A verdadeira inteligência é mexida na água.
Até o momento, somos nós, gloriosamente e convenientemente, o elemento aleatório necessário.
Referências:
https://iai.tv/articles/water-not-silicon-has-to-be-the-basis-of-true-ai-auid-3200
https://www.reddit.com/r/askscience/comments/ox7rvp/how_to_understand_that_godels_incompleteness/